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Doença mental, uma sombra na sociedade

26 Dezembro, 2006 0

Desengane-se quem pensa que o Hospital de Júlio de Matos é um manicómio ou um asilo psiquiátrico. O objectivo desta instituição é precisamente o inverso. Tratar da saúde mental através de serviços diferenciados e apostar na reabilitação e integração do doente são as prioridades. Conheça mais sobre este hospital e desmistifique conceitos.

Na ideia geral das pessoas, a doença mental é associada à deficiência mental e, ao mesmo tempo, o doente mental é encarado como um indivíduo que não é capaz de pensar (quando há muitos que são mais inteligentes do que a maioria da população) e ao qual lhe é associado um factor de perigosidade.

Uma equipa da Medicina & Saúde® passou algum tempo no Hospital de Júlio de Matos (HJM), procurando conhecer a história e a evolução desta instituição, ao mesmo tempo que visitava alguns dos serviços que procuram, essencialmente, tornar possível a reabilitação e integração do doente mental na comunidade e fora dos muros. Muros esses que, ainda hoje, desviam olhares de pessoas que conside­ram a doença mental como uma realidade à parte, como uma sombra da sociedade.

HJM é resultado de uma herança

Após o assassinato do Prof. Miguel Bombarda, director do Hospital de Rilhafoles – actual Hospital de Miguel Bombarda – por um doente, nas véspe­ras da Revolução Republicana, o Prof. Júlio de Matos, que exercia Psiquiatria no Porto, foi chamado para Lisboa.

No entanto, antes dessa sucessão acontecer, encontrava-se em Rilhafoles Salgado Araújo, um senhor de posses, que havia sido indevidamente internado, por obra de um sócio e de um médico. Supõe-se que, em algumas visitas a Rilhafoles, Júlio de Matos teria tomado conhe­cimento deste caso e, possivelmente, em conjunto com Miguel Bombarda, deu alta a Salgado Araújo.

«É o próprio Júlio de Matos que chega à conclusão de que não havia, de facto, motivo para o internamento de Salgado Araújo. Este último, dada a sua experiência e passagem “forçada” pelo manicómio, ficou sensibilizado para a área da saúde mental e revoltado com a situação de pobreza nas condições de tratamento aos doentes mentais», conta-nos o Dr. Luís Gamito, director do Hospital de Júlio de Matos.

Assim, deixa no seu testamento a vontade expressa de direccionar uma parte do seu legado para a construção de um novo estabelecimento, designado por Novo Manicómio de Lisboa, que servisse para o internamento dos doentes mentais e que se deveria reger por normas de grande humanidade e com boas condições asseguradas.

Júlio de Matos, agora em Lisboa como director do Hospital Rilhafoles, resolve então comprar uma área, que pertence hoje ao Parque de Saúde de Lisboa, e cons­trói o Hospital de Júlio de Matos, inaugurado a 2 de Abril de 1942, tendo por referência modelos progressistas na época, nomea­damente, na Europa Central.

De facto, «na altura, foi considerado o melhor hospital da Europa», alerta-nos Luís Gamito. Algo que se pode justificar, precisamente, pela relação harmoniosa que se estabeleceu entre os espaços verdes (com espécies de plantas que não existem noutro lado do País) e as estruturas edificadas», salienta Luís Gamito.

O hospital foi concebido como uma instituição de assistência na área dos pro­blemas do sistema nervoso. Neste âmbito, foram criadas outras especialidades (como Neurologia, Endocrinologia, Sexologia, Oftalmologia, Medicina Inter­na, entre outras) que não apenas o campo da Psiquiatria, no qual o hospital era pioneiro em relação às novidades que surgiam. Esta orientação procurava cortar laços com o passado denegrido da Psiquiatria e com a noção dos asilos psi­quiátricos.

Com esta diversidade de especialidades, pretendia-se passar a mensagem de que «o Homem é um ser complexo que, como tal, tem de ser bem estudado e para isso precisamos de contar com o olhar de várias abordagens. Não é suficiente dizer que o indivíduo é doente mental. É preciso compreender as razões», alerta-nos o director do HJM.

No entanto, no fim dos anos 50, o hospital entra numa fase de degradação por falta de verbas. Em 1971, Luís Gamito chega ao Júlio de Matos como voluntário e confessa-nos que «os tempos eram de grande miséria, com condições deploráveis, embora existisse uma certa dignidade do ponto de vista médico».

Desmistificar a doença mental

Depois do 25 de Abril (1974), a situação começa a alterar-se, até porque existia uma outra atitude política que auxiliou à renovação do hospital. Actualmente, «pode­mos dizer que o hospital é mais Parque de Saúde e menos asilo psi­quiátrico».

As valências são várias, desde as clínicas psiquiátricas às consultas diferenciadas, ao serviço de reabilitação, à psicoterapia comportamental e à residência psiquiátrica, entre outras. Ao todo, são cerca de 30 pavilhões com múltiplas funções e com o intuito de prestar o melhor dos cuidados ao nível da saúde mental.

A doença mental deve ser entendida com a mesma naturalidade com que encaramos uma outra patologia, sem conotações e estigmas. Todos nós, eventualmente, estamos sujeitos a ter problemas do foro psicológico, mais ou menos graves.

É neste sentido que o HJM promove vá­rios eventos culturais, contando com «a ajuda dos amigos – os artistas e os profissionais de comunicação social – mais sensibilizados para tudo o que diz respeito à natureza humana», para desmistificar a doença mental. Essas iniciativas têm sido classificadas como positivas, tendo em conta os objectivos de ter uma instituição de portas abertas à sociedade, em vez de ser considerado um gueto, divorciado da restante comunidade.

Para além desta actividade, existem também serviços específicos orientados para a reabilitação e integração do doente nas famílias e sociedades. O esforço desenvolvido por todos os profissionais deste hospital é notório, mas a batalha é dura quando se tem por inimigo o «monstro» do estigma.

Serviço de Reabilitação

Integrar na sociedade os doentes mentais é um dos grandes objectivos do Serviço de Reabilitação do Hospital de Júlio de Matos. Para isso conta com várias ver­tentes, nomeadamente a residencial, que é classificada como a porta de entrada do Serviço. Esta vertente encontra-se estruturada em diferentes unidades.

Como explica o Dr. Ricardo França Jardim, director do Serviço de Rea­bilitação, «a Unidade de Transição recebe os doentes que saem do internamento. Por norma, são doentes agudos ou de evolução prolongada em risco de institucionalização. Por isso, passam do internamento para esta unidade, na qual se trabalham algumas competências em actividades da vida diária e sociais que os doentes com psicose, normalmente esquizofrenia, perderam».

Por competências entenda-se desenvolver aptidões para realizarem por si tarefas como os cuidados pessoais e de higiene, o tratamento de roupas e a limpeza do quarto, entre outras. A intenção é a reinserção na família ou em outras estruturas residenciais, como é o caso da Casa das Tílias, uma Unidade de Treino Residencial (ver caixa).

Com capacidade para 10 utentes (cinco quartos de duas camas, uma sala, casa-de–banho, lavandaria e cozinha), os doentes são supervisionados por uma enfermeira e por um terapeuta ocupacional que fazem visitas diárias, no sentido de orientá-los para a aquisição de competências in loco.

«O objectivo é, progressivamente, pro­curar criar neles uma autonomia maior na sua actividade de vida diária. Os doentes que passam pela Casa das Tílias são utentes com perspectiva de alta do hospital e reinserção na sociedade. Começa-se por um programa mínimo, no qual se pede aos doentes que façam a limpeza da residência, preparem a mesa para as refeições, etc. Numa fase posterior, com o fim de aumentar a indepen­dência dos doentes, em vez de serem fornecidas as refeições confeccionadas, são entregues os produtos em bruto, ficando a preparação das mesmas a cargo deles, no início, uma vez por semana e posteriormente diariamente. Na última fase, são responsáveis pelas próprias compras dos alimentos e outros produtos», esclarece Ricardo França Jardim.

Apesar de este ser um programa de evolução lenta, a Casa das Tílias já vai na segunda leva de utentes. O sucesso tem sido francamente positivo, na medi­da em que a maior parte dos doentes, relativamente ao primeiro grupo, foram reinseridos na família ou na Casa de S. Bento. Considerada uma Unidade de Vida Autónoma, a Casa de S. Bento conta com cinco utentes, desde Julho de 2001, que saíram da Casa das Tílias.

Outro programa do Serviço de Reabilitação é a Unidade de Vida Apoiada, formada pelas Casas de Santa Rita e das Olaias (ver caixa), duas estruturas residenciais para doentes com relativa autonomia, mas que carecem dos cuidados mínimos de apoio médico e de enfermagem.

De acordo com o director do Serviço, «há uma série de doentes institucionalizados há muitos anos, sem relação com os familiares e em faixas etárias elevadas, que têm uma actividade pragmática boa e não precisam de estruturas hospitalares «pesadas». Na Unidade de Vida Apoiada, os utentes têm as suas tarefas organizadas, como a limpeza, embora não cozinhem. Para além da supervisão da enfermagem, há uma reunião semanal com a equipa terapêutica».

Paralelamente, desenvolveram, na Uni­dade de Terapia Ocupacional (ver caixa), ocupações para os doentes que estão em todo este processo (do Serviço de Reabilitação), recebendo também doentes agudos, doentes de evolução prolongada e doentes externos.

Esta Unidade está orientada para os doentes manterem as capacidades que têm ou adqui­rirem algum tipo de novas capacidades. Está, por isso, estruturada num conjunto de actividades oficinais (papel, carpintaria, culinária, bar e lavandaria), socioculturais e recreativas (atelier de artes plásticas, sessão de movimento e psicodança). Cada doente, de acordo com as suas capacidades e necessidades, tem, deste modo, um programa organizado pelos terapeutas ocupacionais.

O Hospital de Dia é outra estrutura, mas de internamento parcial (os doentes dão entrada às 9 horas e saem às 16 horas, com excepção dos fins-de-semana), «orien­tada para doentes psicóticos jovens, doentes que saíram do internamento a tempo inteiro e doentes com situações graves que não são possíveis de se resol­verem em ambulatório, mas que não têm a necessidade do internamento a tempo inteiro». O Hospital de Dia tem uma equipa constituída por dois psiquiatras, uma psicóloga a tempo parcial, uma assistente social e três enfermeiros.

Formar e empregar

Relacionadas com o Serviço de Reabilitação, existem ainda duas estruturas de formação profissional. No Escritório Europa, os doentes que já tiveram alta, com capacidade e motivação para integrar o mercado de trabalho, podem frequentar o Curso de Formação Profissional em Novas Tecnologias de Informação, co-financiado pelo Fundo Social Europeu.

Outra estrutura, a Cooperativa Tílias­coop (empresa de inserção profissional) foi formada por técnicos da Unidade de Transição e organiza Cursos de Formação e Profissionalização em Manutenção e Conservação de Espaços Verdes, sendo co-financiada pelo I.E.F.P.

Tal como noutros sítios, os 14 forman­dos recebem um subsídio de formação que corresponde ao ordenado mínimo e, poste­rior­mente, na fase de profissionalização, consoante o progresso, surgem varia­ções no vencimento atribuído. Os principais clientes da Cooperativa Tíliascoop são o próprio Hospital de Júlio de Matos e «a Junta de Freguesia do Lumiar, que é o nosso melhor cliente, actualmente», afirma Ricardo França Jardim.

Uma última iniciativa do Serviço, mas não menos importante, é o emprego protegido. A inserção de um doente mental na sociedade é complexa, sendo que, por vezes, o mais difícil é conseguir um trabalho e mantê-lo.

Deste modo, os doentes com alta vêm ao hospital para trabalhar na Lavandaria, no Quiosque e/ou no Clube Horizonte e recebem um pequeno ordenado por mês. Por outro lado, há também um outro objectivo muito específico:

«Depois de um doente ter alta, se o colocarmos “em casa” e não fizermos nenhum tipo de acompanhamento, é normal que a apatia, a tendência para o isolamento e o autismo regressem. Com estas estruturas, o doente vem ao hospital para prestar um serviço e acaba por conviver com os ou­tros e sair do seu isolamento. Isto permite fazer-nos um follow-up desinstitucionalizado», conclui Ricardo França Jardim.

Unidade Comunitária
de Cuidados Psiquiátricos
de Odivelas

À Clínica Psiquiátrica I, uma das quatro que integram o Hospital de Júlio de Matos, dirigida pela Dr.ª Teresa Gil, está associado o internamento misto para doentes agudos. Para além disso, há 15 anos, a equipa da Clínica Psiquiátrica I começou a introduzir, em termos de projecto tera­pêutico, uma diferenciação, fora dos muros da instituição.

«Procurou-se, à semelhança dos centros de saúde mental que vieram a desaparecer, desenvolver um serviço psiquiátrico comunitário para tratar os doentes na sua área de residência, junto das suas famílias e também próximo dos médicos de família e clínicos gerais que os assistem e fazem uma primeira triagem das suas patologias em geral. Muitas queixas que parecem somáticas escondem, muitas vezes, alguma patologia do foro psi­quiátrico», esclarece Teresa Gil.

Rapidamente percebeu-se, então, que seria importante haver uma articulação bastante próxima entre os médicos de família, os clínicos gerais e a assistência psiquiátrica. Dentro desse modelo, a equipa procurou estudar e fazer a sua própria formação para perceber que tipo de resposta poderia dar nesse sentido.
A Unidade Comunitária de Cuidados Psiquiátricos de Odivelas arrancou, em 1990, num edifício em Odivelas, inicialmente com apenas uma Consulta Geral de Psiquiatria e, em 91, com a área de Dia, que permite a reabilitação e inserção social e familiar do doente mental.

«No início, uma das prioridades foi, também, uma ligação mais intensa aos centros de saúde, tendo-se feito, na altura, várias acções de formação e encontros de saúde mental e cuidados de saúde primários, no sentido de participar, motivar e informar, numa espécie de articulação entre nós, os especialistas da área, e os profissionais e doentes dos centros de saúde», afirma a Dr.ª Ana Cristina Farias, psiquiatra e coordenadora da Unidade Comunitária de Cuidados Psiquiátricos de Odivelas.

Diferenciar as áreas interventivas da unidade

Progressivamente, foi-se verificando que era importante desenvolver outro tipo de actividades e o projecto foi sendo desenvolvido, «apesar das grandes dificuldades em relação ao número de profissionais que formam uma equipa multidisciplinar — médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais e terapeutas ocupacio­nais, uma vez que este tipo de trabalho envolve sempre uma equipa multidisciplinar», afirma Teresa Gil.

Em todo o caso, e contornando sempre os contratempos, foi possível diferen­ciar algumas consultas de especialidade, nomeadamente a Consulta de Alcoologia, Tabagismo, Terceira Idade e grupo de apoio às famílias, entre outras. A preocupação de interligar áreas e de prestar serviços complementares e completos esteve sempre presente, até porque se considera essencial para permitir a reabilitação do doente mental.

A directora do Serviço de Clínica Psiquiátrica I salienta que «com os novos antipsicóticos permite-se uma melhor adesão à terapêutica e resultados mais eficazes nos seus sintomas negativos. Ora, se ao nível terapêutico temos essa diferenciação, é necessário que, depois, tenhamos outro tipo de respostas que lhes permita retirá-los do seu isolamento – de casa e do quarto, onde muitas vezes se refugiam».

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