Exposição cultural desmistifica falsos estigmas e crenças sobre os doentes mentais
Lisboa, 08 de Junho de 2006: O grupo artístico 211/2: Plataforma Independente de Transgressão Artística e Serviço de Reabilitação do Hospital Júlio de Matos inaugura hoje a exposição “Interpretações: O Manicómio Dr. Heribaldo Raposo”, com o objectivo de alertar e desmistificar as doenças mentais junto da população portuguesa.
A iniciativa teve como base a interpretação, por parte de artistas plásticos e de doentes, de 20 frases do recém-lançado livro “O Manicómio Dr. Heribaldo Raposo”, da autoria do psiquiatra Pedro Afonso.
Esta mescla de autores pretende promover o contacto da comunidade com a doença mental procurando desmistificar falsas crenças e estereótipos. O estigma com a doença mental provém do medo do desconhecido e de uma consciência social moralmente negativa que originam a falta de conhecimento e compreensão.
Informar, alterar e quebrar os mitos da comunidade com as pessoas com doença mental é muito importante.
Fotografia: Susana Mendes Silva
A exposição, que tem entrada gratuita, poderá ser visitada entre os dias 8 de Junho a 18 de Julho, no Museu da Cidade, em Lisboa. De entre os artistas presentes, destacam-se Graça Sarsfield, Paulo Romão Brás, Rita Nabeiro e Sandro Resende. O projecto conta ainda com os apoios dos Laboratórios Pfizer, Câmara Municipal de Lisboa, Editora Sopa de Letras e Serviço de Reabilitação do Hospital Júlio de Matos.
Actualmente, segundo o Plano Nacional de Saúde 2004/2010, estima-se que a prevalência de perturbações psiquiátricas na população geral ronde os 30%, sendo mesmo 12% dos casos, situações muito graves.
Segundo o autor do livro, Dr. Pedro Afonso, “Os hospitais têm uma história de 150 anos, e ao contrário do que sucedeu na maioria dos países desenvolvidos, não houve em Portugal uma reforma na saúde mental, mantendo-se por conseguinte em funcionamento estas grandes estruturas hospitalares sem que fossem criados serviços de psiquiatria alternativos”.
FRASES DA EXPOSIÇÃO:
1. Sentia-se só, porém, a companhia dos outros há muito que o incomodava; pior do que isso, sufocava-o. Estar perante as pessoas e nada sentir era pior que a morte; uma espécie de prisão sem grades definidas e cujo carcereiro desconhecia. SUSANA MENDES SILVA
2. Mantinha-se imóvel, numa obstinação penitente a ouvir o silêncio, somente interrompido pelo timbre fúnebre que tomava o relógio de parede quando dava horas. No fundo, esperava uma resposta, mas esta não surgia; parecia que o mundo emudecera. Ali estava ele, solitário, sem fome, sem lágrimas, sem futuro, numa absurda contemplação abúlica. MARIA LUSITANO
3. Guilherme conservava um ar perplexo e ausente. Não sabia como é que tinha ido ali parar. Pensou que o tinham trazido para morrer no hospital. Talvez o tivessem feito por misericórdia, para não morrer sozinho entrincheirado no quarto como um cão vadio. Mas isso também deixara de ser importante, já nada o importunava. Que o deixassem ali sossegado a um canto que a morte haveria de o vir buscar. GRAÇA SARSFIELD
4. ─ Ó senhor Fernandes! Cale-se por favor! ─ berrou a enfermeira, procurando repor a ordem.
O doente acatou, sussurrou uma curta reza, benzeu-se e virou-se para o lado, tremendo e pensando quão assustadora era a morte. Apagaram-se as luzes da enfermaria, convidando ao silêncio e repouso. Uma ratazana aproveitando a penumbra viajou até à copa. Não foi denunciada e, atarefada, abasteceu-se de comida, regressando pouco depois ao seu esconderijo. A enfermaria adormeceu e sonhou.
CRISTINA LAMAS
5. Calado a todas as perguntas e perseverante no seu silêncio, obrigou o psiquiatra a desistir. O seu olhar mantinha-se fixo e vazio. Parecia estar noutro mundo e, só o seu corpo, por acaso, tinha por cá ficado. RUTE GASPAR
6. Eis a ordem das causas de alienação: época crítica, demência precoce, epilepsia, histerismo, amor contrariado, desgostos domésticos, ciúmes, terror ou exaltação religiosa, excesso de trabalho, parto e lactação, medos, abuso de bebidas alcoólicas e libertinagem. PAULO ROMAO BRAS
7. Naquelas mesas sentavam-se os representantes das forças mais obscuras e misteriosas. Da profundeza dos seus espíritos espreitavam desejos, premonições e pesadelos. Dos seus rostos perdidos sobressaíam olhares penetrantes, assombrosos, cheios de dúvidas e de experiências de lugares infinitamente distantes. Era ali, naquela sala soturna que aqueles magos renegados se reuniam numa assembleia muda e decadente. LUIS NOBRE
8. A porta abriu-se com estrondo. Entrou de rompante um doente de cabelo grisalho, queixo proeminente e olhos muito abertos.
─ Senhores doutores…─ principiou com uma voz grave. ─ Acabei agora de ser informado por um anjo branco de espada na mão, que o diabo se disfarçou de lagartixa e anda por aí à solta! Desconfio que esteja aqui escondido neste gabinete. CATARINA BOTELHO
9. O largo corredor central do pavilhão parecia, com quartos de um e de outro lado, uma rua de uma cidade. Os doentes por ali ficavam horas, dias, anos, a deambular de um sítio para o outro. Muitos caminhavam sem pressa ora num, ora noutro sentido num desfile funerário. RITA NABEIRO
10. E, os rostos passavam penitentes e resignados, como se algo que lhes fora prometido não tivesse sido cumprido. Matava-se o tempo em orgias de cigarros, num indolente abandono a uma existência vegetativa. ISA DUARTE RIBEIRO